sábado, 29 de novembro de 2014

- Pontos de Fuga

Ele desceu, e por comodidade, não trocou olhares comigo. Sentou-se à mesa e pegou, com certa delicadeza, a xícara que comprei. Colocou o café amargo de todos os dias, abriu a revista de moda da estação passada e a tornou muro entre nós. Depois disso, gentilmente, cruzou as pernas fazendo suas calças cor de cinzas formar um certo volume em sua virilha. O semblante, que já havia demonstrado tanta ternura, estava indiferente às coisas ao redor. Com o olhar egoísta voltado a si, apesar de disfarçadamente apreciar as letras daquela revista velha, ele tomava o café amargo com o gosto de um cachorro sedento. Nunca desejei tanto que a língua de alguém fosse queimada. Observei todo o trajeto que a xícara fazia do pires até sua boca e, todas as vezes, desejei vê-lo lagrimar de dor. Só eu sei o quanto queria aquela língua queimada. Só eu sei o quanto queria ver a língua, que outrora tanto me deu prazer, reduzindo-se ao pó. Não aconteceu. O homem o qual chamava-me esposa pegou sua pasta e saiu porta a fora alegando atraso, seja lá para o que fosse.
Sozinha na casa a qual costumava chamar de lar, reuni a fúria que me consumia como combustível e à ele fiz a mais (im)perfeita obra: Com a madeira da cama que não balançava como antes, preparei a armação; dos lençóis que há muito não bagunçávamos, fiz a tela; com o suor que não transpirávamos, fiz as tintas. Em carvão transformei suas mentiras negras e, com a dor de um coração que fora partido sem dó, rabisquei meu sofrimento. Minhas lágrimas de mulher produziram linhaça e das suas coisas, fiz ateliê. Por fim, dos seus cabelos talhei o meu pincel.
Mas o artista daquela tela, fora o homem qual descrevi mais cedo, que da mais bela história criou o mais triste quadro e da mais pura confiança entregou-se a mais banal traição.

Texto de João Victor Soares

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

- Descongelado


Levantou-se, e como quem não queria nada, deu uma olhadinha na tela do aparelho-escravista o qual chamava de celular. Não sabia bem o que esperava, mas esperava por algo. Um “bom dia” ou quem sabe um “que saudade de você”. E nem sabia o porquê de esperar algo tão piegas, já que passava metade do seu tempo tentando convencer a si mesmo que ela não estava nem aí. E, realmente, ela não estava.
Ainda assim, cativava este sentimento de fazer as pernas bambas como se fosse o último brigadeiro do aniversário. E sabia que era só por gostar da sensação de ter seu coração descongelado depois de longos meses da nevasca em que o antigo-eterno-amor havia deixado. Não queria se declarar a nova garota, muito menos desejar-lhe amor eterno, mas gostava da sensação das borboletas no estômago todas as vezes que ela lhe olhava, ou da maneira que seu rosto enrubescia sem motivo aparente.
Gostava de vê-la falando coisas aleatórias, ou o modo que ficava acuada no canto concentrada enquanto as outras pessoas falavam durante as grandes reuniões. Gostava do seu cabelo, gostava do sotaque de quem veio acolá do Brasil, gostava de toda aquela fúria que existia como uma capa para proteger o coração enorme que ela carregava. Gostava da boca dela e daquele corpo todo certinho.
E, mais do que tudo, gostava da maneira que ela o fazia sentir: nas nuvens. Ela tinha aquele efeito dopante que o fazia ficar ansioso por mensagens que jamais iriam chegar, ou o fazia ouvir músicas só para lembrar dela. Tinha vontade de tocá-la, cuidar, mimar e dar todo o carinho do mundo. Ela o fazia sentir vivo, como se não fosse um caso perdido nas teias dos relacionamentos.
E apesar de a moça não fazer a menor ideia disso ou não fazer questão nenhuma de ter estes presentes, ainda assim ele se sentia feliz em querer oferecer isto a alguém. Por mais agonizante e confuso que isso possa parecer.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

- A Garota e o Céu

Contarei à vocês um pouco sobre o amor pelo céu de certa menina dos cabelos cor de fogo. Era algo ensandecido, do tipo que não faz sentido para alguém que não tem paixão nas belezas do mundo. 
Saía furtivamente das aulas da universidade para ter o prazer de olhar as nuvens dançando na atmosfera e suspirava ao dar de cara com o sol de fim de tarde contrastando com as árvores. Dirigia por aí procurando o momento ideal para parar o carro e fotografar a beleza da aurora. Passava frio durante as madrugadas só para observar as estrelas da sua varanda enquanto fumava um cigarro para esquentar os pulmões. Amava o degrade de cinza dos dias de chuva e cegava-se ao chocar a vista com o azul-perfeito-brilhante de uma manhã sem nuvens. Não achara nessa vida uma nuance que não fosse linda. E encantava-se todas as vezes com as mesmas coisas. 1, 2, 3... Incansáveis vezes.
Para ela, o céu era muito mais que partículas e átomos flutuantes. O céu falava sobre recomeços e sobre a vida não parar, mesmo quando tudo o que queremos é que pare. E sentia uma sintonia entre si mesma e aquelas variações atmosféricas exibidas na aquarela do mundo. A sinestesia dos sentidos ao alterar a mente e ver o céu verde, vermelho, multicolorido e ainda assim saber que era azul. Passava segurança o céu ali.
Quando a vida a deixava cabisbaixa, o sol vinha contar-lhe aos ouvidos a novidade do nascer todos os dias. As nuvens corriam as pistas em várias formas diferentes, se desfazendo, se misturando, entregando a ela a arte da mutação. E a verdade de que o tempo não parava jamais. As estrelas, com seu singelo brilho herdado do sol, mostravam que não importava o quão grande fosse a escuridão, sempre haveria no que se apegar. E por fim, a lua e sua arte de desaparecer e ser considerada “nova”. A novidade daquilo que não se vê.
Ao me contar essas coisas, você não acreditaria na emoção que entranhava-se em cada uma de suas palavras. Chegava a ser bonito ver a esperança depositada ali, no céu, algo que jamais vai se desfazer. E lhe digo eu, duvido que depois de entender as razões pelas quais aquela garota cabelos cor de fogo olha pro céu e demonstra uma felicidade indecifrável, você continue olhando-o da mesma forma que antes.