Ele desceu, e por comodidade, não trocou olhares comigo.
Sentou-se à mesa e pegou, com certa delicadeza, a xícara que comprei. Colocou o
café amargo de todos os dias, abriu a revista de moda da estação passada e a
tornou muro entre nós. Depois disso, gentilmente, cruzou as pernas fazendo suas
calças cor de cinzas formar um certo volume em sua virilha. O semblante, que já havia demonstrado tanta ternura, estava indiferente às coisas ao redor. Com o olhar egoísta voltado a si,
apesar de disfarçadamente apreciar as letras daquela revista velha, ele tomava
o café amargo com o gosto de um cachorro sedento. Nunca desejei tanto que a
língua de alguém fosse queimada. Observei todo o trajeto que a xícara fazia do
pires até sua boca e, todas as vezes, desejei vê-lo lagrimar de dor. Só eu sei
o quanto queria aquela língua queimada. Só eu sei o quanto queria ver a língua,
que outrora tanto me deu prazer, reduzindo-se ao pó. Não aconteceu. O homem o
qual chamava-me esposa pegou sua pasta e saiu porta a fora alegando atraso,
seja lá para o que fosse.
Sozinha na casa a qual costumava chamar de lar,
reuni a fúria que me consumia como combustível e à ele fiz a mais (im)perfeita
obra: Com a madeira da cama que não balançava como antes, preparei a armação; dos
lençóis que há muito não bagunçávamos, fiz a tela; com o suor que não
transpirávamos, fiz as tintas. Em carvão transformei suas mentiras negras e,
com a dor de um coração que fora partido sem dó, rabisquei meu sofrimento. Minhas
lágrimas de mulher produziram linhaça e das suas coisas, fiz ateliê. Por fim,
dos seus cabelos talhei o meu pincel.
Mas o artista daquela tela, fora o homem qual
descrevi mais cedo, que da mais bela história criou o mais triste quadro e da
mais pura confiança entregou-se a mais banal traição.
Texto de João
Victor Soares