Não tem como negar. A gente anda procurando alguns
bons motivos pra olhar pro lado mais vezes – e se esquecer de quem acompanha a
gente. O som sai mais alto da garganta e a voracidade com que as palavras saem
já dita uma desordem. A gente não tenta mais remediar a coisa toda. A gente já não sabe mais por quem se apaixonou. Eu
já não tenho mais vontade de lutar por isso e você não admite que sente a mesma
preguiça ao levantar do sofá pra se arrumar. A gente vive nessa monomania de dar um beijo por
etiqueta. De dar as mãos por costume. De apagar as luzes do abajur pra dormir.
O nosso “boa noite” ficou tão seco que parece mecanizado. Arrancaram o que a
gente ainda tinha de afeto. Amor era quando a gente se bastava – e só nós dois. Quando a
gente não desviava aquele olhar abobalhado de alguma coisa cotidiana que o
outro fazia. Quando a gente brincava de se empurrar no balanço pra ver quem
voava mais alto. Agora a gente tem o que é nosso e não basta. Eu trabalho horas
extras pra não ter que chegar em casa e sentir esse vazio estranho todos os
dias. Você exagera na bebida, na comida, nos remédios pra dormir. De repente
bateu aquela insatisfação – aquela constatação de que as coisas não tavam mais
bem. E daí você parou de atender o celular, e eu não respondia mais as
mensagens. Os convites ficaram por conta de um “pode ser” e de um “que horas?”
cansados. Não tem muito que fazer. A gente sofre daquela
síndrome de querer mais e nem se acusa. Você não se incomoda mais quando eu
olho pras outras meninas – e eu, nem me culpo. Os ciúmes simplesmente
desapareceram. Não tem mais brisa nem peito pesado se a gente briga. Não tem
mais ira e desculpas, e a calma me assusta. Me assusta ainda como o silêncio
fere o amor. É nele que a gente descobre que dá certo junto – e se destrói.
Quando o silêncio incomoda mais do que as pancadas nas paredes, a gente sabe
que as coisas vão ruir lentamente, calmamente, até só sobrar pó. E pedras. Pra
gente arremessar sobre o outro e dizer que a culpa por não ter tentado mais um
pouco foi sua. Pra gente tentar provar que a gente ainda consegue sentir alguma
coisa juntos – nem que seja dor. E a gente vai fazer isso tudo. Agora ou daqui a algum tempo.
Mas enquanto isso, a gente continua sentando à mesa de jantar com uns dois
sorrisos fracos. Meu dia foi bom, obrigado. Impassíveis. O retrato da
felicidade estável. Pros outros, vai tudo bem. Pra gente também. “Bem é bom”, a
gente tenta garantir. Enquanto a gente desvia olhares e segue o ritual, a sopa
esfria. O relógio avança. Por dentro, a gente sofre por lembrar de quando a
gente – e só a gente – se bastava.
Daniel Bovolento (adaptado)